terça-feira, 24 de agosto de 2010

Zôrrei, Chico Força e o pé de milho


Esta é uma das histórias (muitas) que a profissão nos permite conhecer de vez em quando. Eu estava lotado na Seção de Polícia Técnica de Ouro Preto em 2004, quando fui designado para elucidar um pretenso crime de alteração de divisas, na comunidade de Santo Antônio do Leite.

Os disputantes da área atendiam pelos singelos apelidos do título. Zôrrei era descendente de italianos, miudinho, olhos azuis mansos, fala baixinha. Queimado de sol que só ele, passaria por um mulato de olho azul em qualquer festa de roça.

E Chico Força, bom, era isso mesmo. Imaginem um negão de quase dois metros de altura, quase 140 kg de peso e quase nenhum limite para o que poderia fazer usando só as mãos. Um monstro de determinação e de boca suja como eu nunca tinha visto na vida...

Alonzo Reivottri Pinola x Francisco Chagas da Silva. Poderia falar aqui de choque de culturas, mas seria perda de tempo. Um por nascimento e o outro por adoção bilateral, eram dois brasileiríssimos sitiantes em contenda por uma faixa de terra que não daria dois metros de largura, mesmo dando com sobras uns trezentos de comprimento.

O raio da questão era que havia um riacho na divisa das terras. Um homem do campo sabe, mais do que qualquer ambientalista teórico, como as águas são admiradas, amadas e queridas por quem dependa delas.

Está claro que a Perícia Criminal não fora chamada para demarcar terras, já que este trabalho é muito melhor executado por um agrimensor. Fomos chamados porque, não concordando com o agrimensor que os dois tinham concordado em pagar, tanto Zôrrei quanto Chico Força passaram a trocar uns tiros de polveira de vez em quando.

Durante o ano de 2004 fui aos sítios deles umas dez vezes. A cada vez, duas polveiras eram recolhidas. E a cada nova investida da PM, duas polveiras novinhas eram encontradas com os dois. Graças a Deus ninguém, nem mesmo os dois brutos, se machucou seriamente naquele ano.

E com esta frequência toda ao local, uma coisa começou a me chamar a atenção. Chico Força conhecia um rosário de palavrões capaz de encher uma enciclopédia, mas nunca usou nenhum deles para falar sobre Zôrrei. E Zôrrei, por sua vez, nunca alterou a voz para falar comigo sobre a briga em si. Ambos se limitavam a não aceitar perder o riacho entre as divisas.

E aí, monlevadense que sou mesmo - intrão e curioso, no bom sentido - passei a ir lá durante os fins de semana em que não havia tiroteio, para conversar com eles e com as famílias.

Num deles até ajudei a resolver um problemão: um danado de um pé de milho nasceu do lado do Chico e o Zôrrei cismou que tinha "direito" nas espigas. Aquilo podia dar um caroço enorme, mas lembrei de Salomão. Deu para fazer um mingau de milho verde de um lado e uma polenta do outro, que cada um deles dividiu certinho. Como foi eu nunca perguntei, mas por causa de um pé de milho eu não ia trabalhar num homicídio. Isso não!

Ficaram curiosos? Eu também estava, até o dia em que encontrei os dois, cada um sentado de um lado do riacho, pescando lambaris e tomando cachaça, no maior papo e na maior pachorra deste mundo. Gente, nunca trabalhei tanto na minha vida... Comecei a fazer o transporte de farnel de um lado pro outro, molhando a roupa toda no córrego, e provando a pinga de cada um.

Não me levem a mal. Dizer não na cara do Chico Força foi o maior erro que eu cometi nos meus anos de Ouro Preto. A torrente de impropérios foi fácil de escutar, mas eu estava acostumado. Doído foi ouvir dele: "é, dotô, preto conversa com puliça só se fô na repartição, né? Na casa da gente não havera di sê..."

E Zôrrei também não me ajudou muito. Seguiu a linha de raciocínio do Chico, só com um pouco menos de mágoa e um pouco mais de raiva. Pedi ajuda dos céus, rezei para não ocorrer nenhum crime no dia e tasquei a levar pinga do chico pro Zôrrei, pinga do Zôrrei pro Chico, torresmo do Chico pro Zôrrei, polenta do Zôrrei pro Chico... E tudo passando por dentro da água, de forma que nenhum dos dois pescou coisa alguma naquele dia.

Minto: lá pela décima oitava pinga, um dos dois me pescou de dentro do riacho e acabei na casa do Zôrrei. Devo ter dormido umas seis horas direto. Por volta das dez da noite, ele mesmo tinha chamado um colega detetive que morava em Itabirito e que me levou de volta para a sede, no bairro Bauxita de Ouro Preto, sem risco de perder uma viatura e um Perito na estrada.

Ah! Deus me escutou e disse "sim" daquela vez. Não houve nenhum acionamento de Perícia o dia inteiro. Já o que eu escutei do dr. Adauto Correa e da Delegacia inteira vou guardar só para mim...

Vou ter que resumir. O Blog é pequeno para a história completa. Aqueles dois só pararam de brigar pela faixa de terra quando o Chico Força morreu, em Maio de 2005, de infarto. Pouco tempo depois, o dr. Adauto me mostrou os depoimentos finais do Zôrrei, tomados para encerrar o inquérito.

Zôrrei e Chico eram amigos de verdade, só não sabiam disso. Os corpos estavam separados, como deve ser, mas os espíritos sempre estiveram juntos. Eu me lembro, mais ou menos, da frase que resumiu isso, dita pelo Zôrrei ao escrivão: gente, não eram os tiros que a gente deu, que nunca acertaram nada, nem passarinho. A gente mirava era pra cima. Eram os dias de beber a cachaça no corguinho e de visitar os doentes de cada sítio. O melhor deles foi o dia do Dr. Perito ir lá sem ter serviço, porque a gente ainda bebeu a cachaça e comeu a merenda um do outro. Foi bom demais! Eu choro até hoje a falta do Chico, e hoje a divisa é no meio do riacho. Ela sempre foi lá, a gente usava demais. Mas tinha graça mesmo era brigar um com o outro. Minha família inteira sente muita saudade do Chico Força.

O Perito aqui só pode agradecer a Deus, por não ter tido que trabalhar com o que sabe e o que não gosta, e ainda ter conhecido um pouco mais da natureza humana. Onde o que se vê não é confiável, até que se entenda o que se vê.

Uma outra hora eu conto sobre o Disco Voador da Mina de Alegria, e depois algumas outras passagens da minha carreira profissional, se os leitores acharem que vale a pena. Um abraço!

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