domingo, 12 de dezembro de 2010

Sortudo ou abençoado?

Eu sempre me imaginava abençoado. Quando a casa estava sem comida alguma na infância, a Conferência Vicentina aparecia com uma dádiva da Campanha do Quilo. Um vizinho arranjava um quintal para capinar, ou alguém na Praça Sete ou Banco Bemge parava para engraxar um sapato que nem precisava de graxa.

Quando iniciei minha vida escolar, encontrei tanta gente capaz de fazer milagres (D. Angélica, D. Cleuza, D. Geraldinha, D. Coramar, D. Policena entre muitas outras) ali na E.E. Dona Jenny Faria, que até hoje vivo dependente de tudo o que elas me entregaram de coração aberto.

Foram seguidas por muitos outros mestres nas outras escolas. Não vou citar nomes porque alguém vai ser esquecido, e não merece.

Eram e foram pequenos milagres. Eu os via como coisa comum, porque assim é que nós somos. Temos olhos insuficientes por não saber usá-los completamente. Alimento é vida, tanto para o corpo quanto para o espírito.

Já posso esquecer tudo isso! Cada calo, cada sangramento, cada osso que quebrei, cada noite que dormi pouco mais de quatro horas, foi desnecessário. Um anônimo abriu meus olhos! Tive a "maldita sorte" de obter o pouco que tenho...

Graças a Deus, recebi também mensagens de gente que cresceu com minha dor e minha superação. Que viu o menino virar homem. Imperfeito e incompleto, mas generoso e com a memória preservada para entender os pequenos milagres recebidos. Antes tarde do que nunca, rsrs.

Para tentar, do meu jeito limitado, reproduzir estes pequenos milagres na vida de outros. Coisa que fiz durante muitos anos, até iniciar na atividade de polícia técnica.

O mesmo anônimo me abriu os olhos para o fato de que só reclamo. Obviamente, nunca o vi ao meu lado quando eu retorno a algumas famílias destroçadas e levo minha solidariedade espiritual, sempre que sou recebido para este propósito. Às vezes a dor é tão grande que não sou recebido, e entendo.

O anônimo também abriu meus olhos para outro fato: se eu não sou indestrutível, por que diabos fui adotar a profissão atual? Para virar um reclamão, e não entender que tem gente mais capacitada que eu à espera do meu lugar ficar vago?

Puxa, eu sou mesmo muito ingrato. Na minha ignorância, eu não vi que era sorte a minha vida. Eu sempre acreditei que era resultado de competência e garra, abençoada por desígnios de quem me permitiu viver neste mundo. Peço desculpas a todos, agora que uma pessoa sem nome e sem rosto me abriu os olhos para enxergar de forma plena. 

Obrigado, anônimo! É por isso que vocês são fundamentais nos Blogs.

Mas, sendo ingrato, não vou seguir seu conselho. Não vou bendizer o emprego que só leva arroz e feijão para minha casa, porque a desgraça e o desespero acontecem na casa de outros. Eu não gosto do que faço, eu não me acostumo com a morte alheia, eu não acho normal que pessoas tenham que ser destroçadas mesmo, para que gente igual a mim e a você pensem em como o ganha-pão é sublime.

Eu sou profissional. E pronto. Os impostos que você paga são devolvidos até o último centavo, no meu caso. São mais de 80 horas de trabalho toda semana. Com dedicação, garra e competência. Mas com amor pelos outros, o que me leva a detestar o que faço e a não virar uma besta insensível ao sofrimento alheio.

Sendo gente, às vezes eu preciso gritar de dor. Nunca fiz isso querendo angariar simpatia de anônimos, apenas a solidariedade dos amigos e um pouco de compreensão dos que me conhecem e convivem comigo.
Continuarei fazendo, porque isso me renova para a batalha e me fortalece para a guerra contra a animalidade alheia. É bom lembrar que para cada vítima existe um monstro. Eu não jogo no time dos monstros, graças a Deus.

O que eu vou continuar bendizendo, e você não sabe disso com certeza, é o milagre da minha vida. Deus abençoou, e a "maldita sorte" nem passou perto. Se você continuar esperando por ela e não abraçar a luta, vai continuar tendo que desprezar gente como eu, durante muito tempo ainda.

Sinceramente torço para um destino diferente e um milagre diferente acontecerem na sua vida. Felicidades e que Deus continue abençoando seus dias. Claro que, seguindo a sua liberdade, também te deixo um conselho: faça mais por si mesmo, Ele não pode fazer tudo por você porque te legou o livre arbítrio.

E obrigado a tantos outros que mandaram mensagens de solidariedade. Não publiquei porque seria autopromoção disfarçada, e sei que vocês entenderão e me perdoarão.

2 comentários:

Marcos Martino disse...

Tem uma muzguinha muito bacana do Cidade Negra: "Você não sabe o quanto caminhei, pra chegar até aqui". Aliás, na música popular, quantas frases emblemáticas. Ideologia, eu quero uma pra viver. Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem. Aliás, a música do Engenheiros parece feita por mineiro. Esse trem aí é metafísico pra caramba...

Unknown disse...

Mas é bom demais prá quem conhece, ter o vivenciamento e pleno conhecimento de quem são as pessoas que nos rodeiam, quando estas são de carne e osso, alma e coração...

Por que é preciso ter coragem para ser honesto, para ser franco e sincero, para ser verdadeiro!

E é importante, saber olhar estes espelhos, e saber enxergar, o que eles nem sempre nos mostram.
Ou nos esquecemos de ver.

Meus parabéns!