segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

De cacos de vidro às concertinas


No meu tempo de criança, eu e os colegas invadíamos quintais para roubar frutas dos vizinhos e dos nem tão vizinhos assim. Incrível como era simples atravessar a cidade por causa de umas pitangas... Assim como era para bater uma "pelada" com os amigos, que eram muito fáceis de fazer e desfazer. E como era fácil engraxar. Ou vender picolés, pelo prazer de ter uma graninha miúda para ajudar a vidinha miúda.


Nos meados da década de 70, roubar ainda era roubar. Beirando os cinquenta de idade (um pouco menos, admito), a imagem que fica não é positiva. Ainda bem que nenhum cinquentão roubava frutas nos idos de 70, junto conosco.

Na época, iniciava-se um movimento estranho para nós: o nascimento dos cacos de vidro em cima dos muros. Em verdade, era natural que alguns não quisessem ter suas mangas e tangerinas afanadas por moleques sem rumo, mas ainda assim era antinatural que as pessoas sacrificassem um pouco de sua liberdade estética em nome de mais segurança (?).

A passagem doa anos viu mudarem muitas coisas, outras nem tanto. Aqueles meninos mudaram muito, a grande maioria em homens de bem e de caráter. Outros nem tanto. Alguns muros ganharam novos significados, outros concertinas. Alguns cacos de vidro mudaram muito...

A concertina é um arame farpado anabolizado. Tem lâminas afiadas ao longo de sua extensão e é uma espécie de novelo grandalhão, porque os ladrões hoje não se interessam mais por mangas e tangerinas. Talvez porque grande parte deles não fizesse questão de participar dos nossos erros de infância.

Mas algo, estranhamente, não mudou, desde os cacos de vidro. O efeito ilha. Continuamos vivendo ilhados, cercados de nós mesmos, isolados de convívio. Saímos para a noite na busca de novos amigos, mas desprezamos o vizinho do lado. Deixamos de ter quintais, mas não deixamos o medo para trás.

Cercamos nossos filhos, restringimos sua liberdade na rua, e oferecemos tudo o que a rua oferece no conforto do quarto, via Internet. Ali eles podem ter acesso à pedofilia, morte, destruição, intriga, dor e selvageria sem restrições. Mas na rua, não!

Os cacos de vidro foram o evento político mais importante para algumas vidas brasileiras. Para o Bem, para o Mal, eles evoluíram. Nós é que ficamos parados no tempo, adaptando-nos ao inferno. Deveríamos ter adaptado o ambiente à nossa volta.

2010 está aí. É só mais um ano para que a sinfonia de nosso medo, tocada a concertinas, aconteça à nossa volta.

Eu sinceramente trabalho, desde que me entendo por gente, para que esta sinfonia tenha um último movimento, e o silêncio de alguma paz venha a machucar os nossos ouvidos. Um dia terá que acontecer, se eu e muitos outros continuarmos perseverando.

Esta é uma batalha que não pode parar. Sob o olhar atento das concertinas, a humanidade terá que mostrar que é mais forte que os cacos de vidro de nossa infância.

Agenda oculta? 2010 será muito maior que a insegurança e o medo, é claro. Mas temos que fazer a nossa parte. Nem que seja nos preparando para uma guerra sem precedentes, porque a raça humana está perdendo batalhas cruciais nos últimos tempos. A mais importante, e mais dolorida, é a batalha pela lucidez.

Há gente demais se entregando à ignorância. Este é, seguramente, o caminho mais rápido para encerrarmos nosso ciclo de vida aqui no planeta Terra. Eu não quero deixar que este dia chegue por falta de minhas ações de batalha.





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