terça-feira, 29 de junho de 2010

Olhares e visões


Esta é a porção central de um pires de porcelana branca, às 10h25 da manhã de 29/06/2010. Meia hora antes, não havia nada sobre o pires. Não sei o que me impressionou neste borrão indistinto para me motivar a escrever, até porque é raríssimo que eu use o horário de trabalho "regular" para tanto. O horário de trabalho irregular eu uso mesmo; é inumano exigir dos policiais que eles estejam aptos e disponíveis durante as 24 horas de um dia.

Este borrão significa muito pouco para os olhos. Na minha visão estreita de profissional, ele confirma que havia cocaína em uma porção ínfima de uma substância que foi encaminhada ao laboratório básico que mantemos em João Monlevade.

Para quem não realiza este tipo de exames básicos, acho que ele significa menos ainda; quem poderá dizer o que vê numa mancha sem forma?

Mas numa visão ampliada, que ultrapasse os limites dos olhos, eu enxergo muitas vidas sendo afetadas. De forma severa e, às vezes, de forma irreversível. Neste borrão disforme e nesta manhã específica, eu vi uma família inteira sendo esfacelada.

A sensação de impotência é indescritível, por isso não tentarei dizer mais nada. Vai ficar só uma reflexão, que abrange os olhos e o que eles podem, efetivamente, ver.

Nossos olhos são pequenos demais, comparados à visão. E talvez isso se aplique a todos os nossos órgãos sensoriais, com uma ênfase maior ainda sobre o que podemos raciocinar logicamente, a partir do que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e saboreamos.

Hoje, decidi que vou passar a valorizar mais o trabalho que a ferramenta. Decidi que meus olhos e ouvidos são insuficientes, que não alcançam tão fundo quanto seria necessário para que eu não fosse, por mim mesmo, incompleto em minhas conclusões precipitadas.

E resolvi me ampliar, para evitar esta pequeneza que afronta tudo o que a criação espera de mim. Insignificante, mas importante para o mundo, como qualquer outro ser humano. Como todos os outros seres humanos. Quero aprender a ver além dos olhos e a ouvir além dos ouvidos.

Para que minha vida, assim como aquelas vidas que eu citei ali em cima, não fique tão pequena e sem esperanças que possa ser colocada num borrão, no centro de um pires qualquer.


Um comentário:

Marcos Martino disse...

Pois é, Célio. Muitas vezes nossos ofícios nos embrutecem. Temos nossos momentos de imensa fragilidade e nessas horas nos damos conta de como a convivência humana é dura, áspera, sem sentido.