segunda-feira, 11 de abril de 2011

Caçador de caçadores

Não vou conseguir me lembrar do ano exato, infelizmente. Mas lembro o local: Escola Estadual D. Jenny Faria. Lembro o horário provável: recreio do turno da manhã. Lembro quem era a vítima: uma loirinha nada bonitona do ponto de vista estético. Lembro quem era o caçador: um moleque bem fortinho e danado de ágil. Lembro como era a caçada.

O Jenny Faria tinha (e acho que ainda tem) uns corredores longos revestidos de cerâmica vermelha e que ficavam em volta do pátio central. Naquele tempo, os corredores eram mantidos bem limpos e encerados (o que significava capricho e um certo desconhecimento sobre a segurança, rsrs). A caçada consistia em escolher uma vítima (de preferência bem humilde e com um prato ou um copo de merenda nas mãos), guardar uma distância boa e disparar na corrida. 

Chegando bem perto da vítima, o lance era deslizar pelo chão, com as pernas para a frente, utilizando os pés como aríete para derrubar quem quer que fosse escolhido. Derramava-se para o chão um menino ou uma menina, com a merenda voando para o alto e caindo em cima dele e de quem tivesse dado a voadora. Quem estivesse do lado que se virasse também, para não ser atropelado junto.

Eu já tinha dois anos de turno vespertino nas costas, e nunca tinha visto nada parecido. Nem de longe. Mas já vinha com a má fama de não levar desaforo para casa. Então, não era comum eu ser vítima das voadoras, até porque sempre aprendi a identificar o ambiente antes de me colocar nele.

Naquele dia e naquela manhã, aprendi duas lições para sempre. A primeira, um caçador nunca se preocupa com a dignidade da presa. Nem com a dignidade da caça, o importante é o abate eficiente. A segunda, e mais importante: as pessoas são belas a maior parte das vezes, bastando que tenham uma boa chance de demonstrar essa beleza.

Eu vi a corrida, o deslizamento e a queda. Vi a loirinha se reerguer, em completo silêncio e com uma dignidade serena que até hoje não consegui ver novamente. Mesmo com toda uma montanha de mingau de aveia cobrindo o uniforme e queimando-lhe os braços e parte do corpo. Vi o agressor se levantar, rindo. E muitos outros garotos e garotas rindo também.

E então, vi os olhos dela. Era ali que estava toda a tristeza do mundo, toda a vergonha do mundo, toda a humilhação do mundo. Virou paixão, claro. E não vi mais nada por uns três longos segundos de minha vida curta.

O que eu não pude ver era que uma corda se arrebentou dentro de mim. Meu mundo havia acabado de mudar para sempre sem eu saber. E nesta nova versão, não havia espaço para este tipo de diferença de forças. Pulei para cima do garoto e dei-lhe uma sova daquelas de ficar na história, debaixo de uma chuva de comentários sussurrados pelos meninos em volta.

Não me lembro quem me tirou de cima do garoto. Só sei que fomos os dois para a temida Secretaria e os trâmites burocráticos deram a cada um o seu castigo merecido. No meu caso, uma advertência por escrito. Em casa, Maria Augusta me deu o tratamento esperado, que era uma boa surra e uma explicação de mãe que ficou para sempre:

"Você vai apanhar porque não quero te ver no caminho das brigas. Mas depois de apanhar eu vou te dar uma maçã, porque estou com orgulho do motivo da sua briga. Eu sou uma mulher burra e não podia estar falando isso, mas quem dera as mulheres tivessem quem olhasse por elas nesse mundo igual ao que você fez."

Minha mãe nunca me pareceu tão inteligente e sábia quanto a partir daquela hora. E minha admiração por ela só cresceu ao longo da nossa vida juntos. Os dias seguintes na escola?

Virei um caçador de caçadores, por uns dez dias. Aperfeiçoei a técnica. Quando alguém passava correndo em direção a uma vítima perto de mim, eu mesmo dava uma rasteira e bloqueava o acesso. Não acontecia a voadora deslizante, a briga também não (já que a ferocidade faz milagres pelo marketing) e tudo ficava legal entre todos.

O mais bonito de tudo isso é que outros caçadores de caçadores surgiram e a brincadeira infame terminou sendo abandonada por todos. Não foi um remédio universal, mas foi suficiente para curar aquela doença específica.

Ainda hoje sou caçador de caçadores. Não consegui largar. O que aprendi foi a separar a caçada justa da injusta. E a escolher melhor meus alvos. Só atinjo o pescoço dos caçadores desleais.

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